segunda-feira, janeiro 15, 2007

Defende o dever de falar a verdade, independentemente das consequências

«Quando, numa noite longuíssima, contei ao Carlos a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade, ficou desesperado.
(...)
Numa tentativa para ver claro, comecei a escrever uma série de apontamentos. Alguns seriam a mim destinados, outros eram rascunhos de cartas que lhe terei enviado. Correndo todos os riscos, transcrevo-os na íntegra. Uma paráfrase jamais daria o tom, infantil e angustiado, que contém. Eis o que, a 20 de Junho de 1969, dizia ao Carlos: "O que me prende a ti: admiração pelo teu carácter, tens imensas qualidades, dureza, consistência, força, intuição, capacidade de sofrer, honestidade, lucidez, resistência." Seguia-se uma espécie de balanço: "O que não gosto em ti — comodismo e superficialidade; não exigência do melhor; falta de curiosidade (incluindo a intelectual), o 'tudo quanto vem à rede é peixe'; falta de sangue novo; não discutir os problemas; a tua falta de alegria; a tua pouca ânsia de felicidade. As tuas frustrações: o 'gostaria de, mas'. O que te prejudica: o pessimismo; o medo de decepções; o seres fechado (a desconfiança); a ilusória frieza e invulnerabilidade; o entregares-te pouco, no amor, na vida, na profissão, as mentiras ('as canções do bandido'); possivelmente, as tuas ideias acerca do amor, do casamento, do ciúme. O que me atrai: acima de tudo, a tua ternura; depois, o teu humor, a tua força, a tua 'interioridade', a tua passividade, a tua estabilidade, o teu ar adulto, a tua calma, os teus silêncios (às vezes), a tua tristeza. O que me irrita: a tua pseudo-sensatez (e anti-brilhantismo) — não exageras, não te excitas, não te admiras —, o teu masoquismo (o 'comigo, já se sabe...'), os teus silêncios (às vezes), a tua pouca generosidade, a tua falta de curiosidade, a tua grande e desconhecida crueldade, o seres impiedoso, frio e cruel (o deus invulnerável), o teu isolamento, a tua incapacidade de pequenos actos de amor, inesperados e loucos. O que eu gosto em mim: a minha alegria de viver, a minha espontaneidade, a minha curiosidade (intelectual, musical), a minha generosidade, o não me deixar vencer pela vida (o não me deixar 'domar'), a felicidade como um dever (o amor pelos prazeres terrenos), a minha honestidade (nunca mentir); a inteligência teórica, a minha capacidade de revolta, a minha coragem na redescoberta; a necessidade de cultura. O que odeio em mim: a dependência afectiva; a minha inconsistência como pessoa; o ser fraca, instável, imatura, insegura, ciumenta, possessiva; o não poder estar sozinha; o desespero imediato; a minha brutalidade; a minha covardia (não ser capaz de sofrer, fraqueza, timidez), as infidelidades; a pouca atenção dada ao 'outro', o ser, como as crianças, egocêntrica, que é o mesmo de ser egoísta; falta de intuição; pouca assimilação do que leio; a inveja." No final, acrescentava, orgulhosa: "É preferível estes erros do que, por medo, os não ter cometido.»

Bilhete de Identidade, Maria Filomena Mónica